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COLECIONANDO PAISAGENS

Fernanda Lopes

 

  Em sua exposição Lembranças de Paisagem dentro da Temporada de Projetos do Paço das Artes, o artista Bruno Faria propõe ao público uma conversa sobre um dos temas mais caros dentro de sua produção e um dos mais antigos dentro da história da arte: a paisagem. Ainda no século 13, a pintura italiana começou a incorporar nas pinturas religiosas ambientes terrestres onde os santos, a sagrada família e o próprio Jesus teriam vivido, e já no século seguinte, a pintura de paisagem começou a conquistar progressivamente um lugar de destaque nos gêneros em que foram divididas as atividades pictóricas até constituir-se, na Holanda do século 17, como um gênero específico, autônomo.  

  Durante muito tempo, a pintura de paisagem caracterizou-se pela representação de grandes espaços reais (agrícolas, urbanos ou naturais) destinado à contemplação estética – em que o quadro se torna uma espécie de janela – ou mesmo ao registro de outros lugares, por vezes exóticos, como as pinturas de paisagem feitas do Novo Mundo, no período das grandes navegações. Na produção de Bruno Faria, a paisagem, ao contrário, não é aquilo que se observa ao longe, com distância. A paisagem não é o outro. Ela é, na verdade, o lugar onde o corpo está presente, e justamente por conta disso, paisagem é uma possibilidade de percepção, de experiência do espaço que só pode se dar a partir da presença. É como se para o artista, nada fosse possível à distância.

  Lembranças da Paisagem, obra que dá nome à mostra, é um work in progress iniciado em 2016, que o artista mantém em andamento até hoje. Como muitos dos trabalhos de Bruno Faria, este tem início quase que por acaso, da sua observação do que está ao redor, muitas vezes em meio a processos de outros trabalhos. Em 2016, ele estava em Brasília, produzindo o trabalho Candangos – título que remete ao apelido dado por Juscelino Kubitscheck aos trabalhadores que migraram para Brasília e foram os grandes responsáveis por sua construção. A obra reúne um exemplar da edição histórica da Revista Manchete da década de 1960 sobre a construção de Brasília, aberta na página com a foto oficial em que Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer e toda a comitiva estão escolhendo o terreno para a construção de Brasília. Ao lado, o público pode ver também uma mesa de ambulante com vários exemplares de cinco tipos de esculturas-souvenir comercializados em pontos turísticos de monumentos que retratam a cidade: Catedral Metropolitana de Nossa Senhora Aparecida, Congresso Nacional, A Justiça, Memorial JK, e Os Candangos.

  Enquanto pesquisava essas pequenas esculturas, Bruno encontrou outro tipo de souvenir: as bandeiras que agora vemos em Lembranças da Paisagem. Produzidas entre as décadas de 1960 e 1970, elas funcionavam como cartões postais, trazendo imagens-ícones de cidades do Brasil além de frases-slogans como “Lembrança da cidade maravilhosa”, “Campinas, cidade das andorinhas”, “Brasília, a capital do modernismo”. A partir daí, o artista começou uma coleção, procurando em mercados de segunda mão pelas cidades por onde passava, como nas feiras da Praça Benedito Calixto, do Bexiga e do Masp, em São Paulo, além da realizada na Praça XV, no Rio de Janeiro, entre outras, inclusive online. Nesse processo, percebeu questões como padrões de tamanhos adotados, tipos de frases, imagens recorrentes. No Paço das Artes é possível ver uma parte dessa coleção, montada como um grande mostruário em uma das paredes do espaço expositivo. 

  Em todas as flâmulas, Bruno vela todos os textos existentes, deixando apenas a imagem da paisagem correspondente à cidade. Em alguns casos, a ausência do texto torna muito difícil, ou quase impossível reconhecer de qual cidade estamos falando. Em outros, acontece o exato oposto: a imagem escolhida para representar é tão icônica daquele lugar, que nem precisamos do texto para reconhece-la. É inevitável pensar aqui na paisagem não só como imagem, mas também como construção. Uma construção não só estética, mas também política e social. Como é possível não só reconhecer, mas também resumir, uma cidade em um país tão grande e diverso como o Brasil, com apenas uma imagem? Qual cidade se quer divulgar com a escolha de determinadas paisagens como referência? Ou seja, o que significa falar do Rio de Janeiro, por exemplo, tendo como referência o Pão de Açúcar, o Corcovado ou a Baía de Guanabara? Da mesma maneira, a Igreja da Pampulha em Belo Horizonte ou o Palácio do Alvorada em Brasília? Ao nos mostrar essas flâmulas, Bruno Faria também aponta para a necessidade de se pensar essas escolhas. O que significa resumir essas cidades a esses ícones? E, ao mesmo tempo, que outras referências são possíveis para essas cidades e por que elas não foram adotadas? 

    Essa espécie de descompasso entre a paisagem ideal e a paisagem real é também um dos pontos-chave do segundo trabalho em exposição no Paço das Artes. Em City Tour, Bruno Faria se apropria de um vídeo desenvolvido pelo Governo do Estado de Pernambuco, distribuído gratuitamente para as agências de viagens no Brasil e no mundo para divulgar “o melhor do estado” e estimular o turismo na região. As imagens que vemos foram mantidas como no original: a beleza das cidades é apresentada alternando planos aéreos, que revelam a exuberância da natureza tropical, com detalhes, onde é possível ver a alegria do povo, as festas populares, os pontos turísticos, a culinária, e outros costumes. O áudio original, que era de uma música local, foi substituído pelo artista por uma gravação feita por ele, caminhando pela cidade do Recife, durante um percurso de cinco minutos pela região central. O som “verdadeiro” apresenta o caos urbano, com interferências sonoras do trânsito e dos próprios transeuntes.

    Há aqui a percepção da paisagem como elemento apropriado e ressignificado dentro de um discurso específico. No caso, imagens que representariam um ideal de beleza, alegria, diversidade e harmonia, dentro de uma lógica da indústria do turismo. O estado de Pernambuco, “vendido” pelas agências de viagem e pelos pacotes turísticos, se mostram muito distantes da realidade desse mesmo estado brasileiro e de boa parte da sua população. Com a simples operação de troca da trilha sonora, Bruno Faria cria uma espécie de curto circuito. Ao ver imagens paradisíacas, ensolaradas, com festas e tradições regionais exibidas orgulhosamente, esperamos uma trilha igualmente festiva, alegre. Mas o que o artista nos oferece é o duro contraste, com uma trilha sonora que representa o dia a dia da capital do estado, com uma confusão de carros particulares e transporte público, com transeuntes andando pela cidade, que, em meio a propagandas na rua e sem tempo de perceber ou desfrutar de suas belezas, tentam resolver problemas do cotidiano pelo celular, ou vender mercadorias aos que passam.

Importante perceber que este é um trabalho realizado em 2006 e esse arco de tempo enfatizado pela exposição no Paço das Artes – 10 anos em relação ao início de Lembranças da Paisagem e 15 anos de sua realização comemorados este ano – possibilitam pensar articulações dentro desse intervalo temporal e também entre os dois trabalhos, colocados lado a lado. A percepção da paisagem não só como uma construção, mas a ênfase em seu caráter ficcional, unem os dois trabalhos de maneira definitiva. E aqui, ficção se aplica em suas múltiplas possibilidades de leitura: a elaboração de algo imaginário, fantasioso, que não existe, mas ao mesmo tempo uma grande falácia, um fingimento, uma mentira, ou mesmo uma fraude. 

  Reconhecer essas dimensões de ficção nas diferentes paisagens ao nosso redor é ponto central na produção de Bruno Faria. Por extensão, todas essas definições colocam em xeque palavras exatamente opostas às noções de ficção: realidade e verdade. O fato dele mesmo se colocar nessa posição de deriva, de observação do entorno em inúmeros de seus trabalhos é evidência disso. Adotar como procedimento trabalhos que se constroem ao longo do tempo, a partir da noção de work in progress, também. Que tipo de mudanças a passagem do tempo e o que dela deriva (mudança de gerações, governos, relações e até mesmo a mudança do olhar do artista, da crítica e do público) pode ser evidenciadas? 

 

  Mas não para aí. Reconhecer o procedimento não basta. É preciso se perguntar como, por que e por quem essas ficções são construídas e de que maneira elas interferem nas nossas percepções e ações no mundo. Mais do que colecionar paisagens, Bruno Faria coleciona ideias e pontos de vistas de paisagens, procedimentos de leitura e construção do que está à nossa volta, que refletem o pensamento de um tempo, de grupos sociais, de gestões políticas, de configurações econômicas. Perceber como olhamos e lidamos com as paisagens e também perceber como elas nos formam, nos informam e nos condicionam. 

 

 

Fernanda Lopes

 

 

Crítica de arte e pesquisadora, Fernanda Lopes é doutora pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de A experiência Rex: “éramos o Time do Rei” (2009) e Área experimental: lugar, espaço e dimensão do experimental na arte brasileira dos anos 1970 (2013). Em 2017 recebeu, com Fernando Cocchiarale, o Prêmio Maria Eugênia Franco da Associação Brasileira dos Críticos de Arte pela curadoria de exposição Em polvorosa — Um panorama das coleções MAM Rio (2016).

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